Artigo do meu irmão WILMAR DA ROCHA D'ANGELIS. Professor Doutor em Linguística na Unicamp e indigenista.

Quando Portugal se decidiu por colonizar as terras do Brasil, já na década de 1530, executou duas medidas importantes: a primeira foi enviar ao Brasil uma missão colonizadora, a de Martin Afonso de Souza, em 1532, que fundaria a primeira vila na nova terra, São Vicente; e em seguida, em 1534, criou as Capitanias Hereditárias (inicialmente, 14), distribuídas a 12 ricos homens ligados à corte. Foi a política precursora da concessões de estradas, aeroportos, reservas minerais e reservas florestais, hoje moeda corrente.

Fato curioso, da viagem e missão de Martin Afonso, é que ela não aportou no Nordeste ou na Bahia, mais próximos de Portugal (considerando a viagem marítima), e bem mais ensolarados para a cultura de cana-de-açúcar; porque não é desconhecido de ninguém o fato de que a economia do Brasil colonial nasceu globalizada: a produção da cana destinava-se ao mercado externo (não do Brasil, que era apenas colônia, mas do Reino Português). E Martin e seu irmão, Pero Lopes, escolheram para si três capitanias no Sudeste e Sul: Santo Vicente, Santo Amaro e Santana. E por aí mesmo começou a colonização do país, com a ajuda decisiva de João Ramalho e outros degredados, que já haviam firmado alianças com grupos Tupi. Martin Afonso e seu irmão tinham os olhos voltados para o Caminho de Peabiru, que os levaria (segundo informação dos índios, por meio dos degredados), às terras de um rei coberto de ouro e prata. Fracassaram nas tentativas de ir até lá, mas as capitanias seguiram seu rumo.

Porém, a produção da cana-de-açúcar do litoral Sudeste acabava sendo menos rentável que aquela produzida no Leste e Nordeste, seja porque, nestas últimas, a rota para Portugual era bem mais curta, seja porque a planície costeira nessas regiões é quatro a cinco vezes mais larga, a partir da costa, do que no litoral paulista, sem contar os maiores níveis de insolação e a ocorrência do fertilíssimo solo massapé (ou massapê). Daí que a economia paulista tomou outro rumo, já antes dos meados do século XVI. São Paulo (na época, ainda Capitania de São Vicente) tornou-se o grande “produtor” (por apresamento) de escravos indígenas para toda a costa. Surge o que se pode chamar, literalmente, de “economia bandeirante”. O núcleo desse empreendimento sempre esteve em São Paulo de Piratininga. Sua expedições varreram praticamente toda a costa sul, a ponto de cronistas registrarem que antes do final do século XVI os Carijós haviam sido totalmente dizimados. Ainda que não fosse de todo verdade, o fato é que o litoral sul fora mesmo despovoado dos indígenas, a maior parte escravizados e vendidos em São Vicente. Na década de 1620, por continuados ataques às reduções jesuíticas do Guairá (no atual estado do Paraná), alguns dos mais famosos bandeirantes paulistas como Raposo Tavares e Manoel Preto aprisionaram mais de 60 mil indígenas, trazidos a São Vicente e vendidos, ali mesmo, mas também no Rio de Janeiro, a donos de engenho de toda costa. Na década seguinte os ataques reiterados foram às reduções jesuíticas do Tape (atual estado do Rio Grande do Sul), havendo cronistas que registraram haver chegado ao litoral paulista mais de 36 mil índios aprisionados, apenas em uma dessas investidas. E lá estavam, claro, alguns dos maiores “heróis” paulistas: Raposo Tavares, Fernão Dias Pais e André Fernandes.

Não há senão números aproximados e conservadoramente estimativos do número de indígenas chegados ao comércio, no litoral. Jamais se saberá quantos foram os milhares efetivamente aprisionados e mortos pelo caminho, nos comboios em que iam atados a ferros (há documentação que prova isso), por 700, 800 e até mil quilômetros. O insuspeito Afonso de Taunay menciona um documento espanhol que se refere a 300 mil índios aprisionados. O fato é que a economia paulista viveu fundamentalmente dessa atividade e comércio hediondo durante todo seu primeiro século e meio de existência, ou seja, até a segunda metade do século XVII pelo menos. O célebre historiador Jaime Cortesão, em obra de exaltação mais do que tendenciosa de Raposo Tavares, afirmou que o empreendimento paulista das bandeiras de prear índios, a começar por aquela capitaneada por Tavares no Guairá em 1628-1629 “abasteceu … com relativa suficiência” os mercados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, um “mercado exigente”, nas palavras dele próprio.

O comércio bandeirante de indígenas foi, porém, atropelado pela entrada da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais no abastecimento de mão-de-obra escrava. A economia escravagista dos paulistas era apenas subsidiária (do mesmo modo que a pecuária) daquela que era a principal atividade econômica destinada ao Brasil: a produção de açúcar. Os holandeses fizeram do comércio de escravos um empreendimento globalizado, numa escala econômica que tornou obsoleta a forma de exploração bandeirante. As afirmações, em livros didáticos, de que “os índios não serviram” para o trabalho escravo e, por isso, foram substituídos por escravos negros é falsa; no mínimo, fruto de completa ignorância dos fatos históricos. Indígenas aos milhares (possivelmente meio milhão ou mais) foram escravizados e deram suas vidas no serviço ao latifúndio. E os principais preadores deles foram os bandeirantes paulistas.

Com a mudança na economia, o bandeirantismo se volta à busca do ouro, diamantes e outras riquezas minerais. A descoberta das riquíssimas jazidas de ouro das “minas gerais” muda o quadro econômico do Brasil interiorano no final do século XVII, mas três décadas depois as “minas” deixam de pertencer ao território de São Paulo (capitania que também perdia, nesse tempo, as terras ao Sul e as do Mato Grosso). A economia paulista recuperou-se, no entanto, a partir da metade do século XVIII. E a recuperação veio pelo trânsito e comércio do gado e muares buscados em terras do atual Rio Grande do Sul. De início, na década de 1730, provavelmente por roubo ou contrabando, trazidos da região de Vacaria. Mas depois da derrota das missões jesuíticas, a quem pertencia o gado “alçado”, na Guerra das Missões em 1756, esse trânsito e comércio floresceram espetacularmente. Paulistas se estabeleceram no Rio Grande do Sul (conhecidos, então, por lá, como “biriba”, ou “mbiraíva” = gente ruim) e firmaram um caminho de tropas, que trazia o gado bovino e muar (que até então não era deles) para o que se tornou o grande centro desse comércio: a feira de Sorocaba. Dali saíam as tropas que abasteceriam a economia do ouro, em Minas Gerais. Mais uma vez, foram as terras e as posses dos indígenas que alavancaram a economia bandeirante.

A economia do ouro de Minas já apresentava decadência no final do século XVIII, quando um novo surto econômico continuou a demandar, dos paulistas, o fornecimento sobretudo de muares: a economia cafeeira, avançando do Rio de Janeiro para São Paulo pelo Vale do Paraíba. O café, porém, cobraria terras e mais terras, enquanto fosse o sustentáculo do Brasil agrícola. O café foi a fonte de todo fausto e riqueza do 2o Império, e sustentou as oligarquias da Primeira República.

Pois foi no avanço da economia cafeeira, na busca de mais terras para explorar, que os paulistas avançaram em direção ao território dos Kaingang. Ao Sul do Rio Tietê, as ocupações mais a Oeste, dos paulistas, na metade do século XIX, eram Pirapora, Sorocaba e Itapeva. No final daquele século, Bauru era o ponto mais ocidental, e a partir dali, mais de 300 km de “sertão desconhecido”, território Kaingang e Oti, se estendiam até o Rio Paraná, limite extremo do Estado.

Bauru foi o ponto de partida, em 1906, da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, destinada a atingir Corumbá, na fronteira com a Bolívia. Todas as terras ao longo da que seria a Noroeste do Brasil, em território paulista, estavam vendidas pouco depois do início das obras da ferrovia. Atrasos seriam imperdoáveis, e a existência de indígenas ou de onças não seria impedimento para o progresso paulista. Ações armadas, executadas por pessoal da própria ferrovia ou contratados, garantiam a “proteção” das obras e dos trabalhadores. Os Kaingang tentaram, das formas que puderam, indicar seu descontentamento com a invasão do território. Retiravam trilhos ou dormentes já assentados. Buscavam aparecer aos trabalhadores para tentar fazer-se entender. Em algumas poucas vezes, atacaram e tiraram vidas dos invasores do seu território.

Foi somente a ação do (recém-criado) Serviço de Proteção aos Índios, o SPI, que conseguiu evitar a tragédia do extermínio total dos Kaingang no Oeste Paulista. Mas seu destino, ainda assim, foi trágico. Após o contato, as doenças para as quais não tinham defesa os dizimaram rapidamente; de cerca de 1.200 indígenas, ao tempo do contato (1912), estavam reduzidos a menos de 200 pessoas quatro anos depois (Darcy Ribeiro, 1970).

Não bastasse isso, “não havia terras” para eles, naquilo que tinha sido, até ali, e por séculos, seu território tradicional; todas as terras do Oeste paulista já tinham “proprietários” paulistas, entre os quais, obviamente, próceres da política. Com algum custo o SPI negocia, com fazendeiros, duas tripas de terra para “localizar” os Kaingang dos grupos sobreviventes, removendo-os de suas aldeias. Juntas, as duas terras destinadas a eles somam, hoje, mil hectares, dentro de um território do qual foram senhores, com mais de 4,5 milhões de hectares, até 1912.

A conclusão que se impõe é que São Paulo não seria nada, realmente nada, se não fossem os índios: não fossem os índios que exterminou, não fossem os índios que escravizou, os índios que vendeu, os índios de cujo território e riquezas se adonou, enfim, se não fossem os índios cujo genocídio promoveu.

Dizer que o Estado de São Paulo tem uma dívida histórica com os povos indígenas é dizer pouco. São Paulo tem uma dívida de sangue, e não se trata de uma dívida que morreu no século XIX: todas as grandes riquezas geradas em São Paulo, todas as suas famílias quatrocentonas, toda sua oligarquia alavancada pelo café herdou, junto com os bens materiais, uma parte considerável dessa dívida pelo genocídio das populações indígenas.

O que São Paulo vai fazer sobre isso?

Em setembro os indígenas Guarani ocuparam o Pico do Jaraguá, na cidade de São Paulo, e desligaram antenas de transmissão de televisão, em sua luta contra a redução de uma pequena terra que haviam conquistado. O representante das empresas do setor de rádio e televisão foi à imprensa para dizer que os índios têm direito a protestar, mas não podem afetar o direito de informação (?) dos cidadãos. Não passa pela cabeça do empresário que os índios têm, antes de tudo, direito às suas terras! Em suma: os índios podem protestar, e é tudo!

Wilmar R. D’Angelis

(Linguista, indigenista, professor do Depto de Linguística – UNICAMP)